18 de nov. de 2009

O LIVRO DILACERADO

 Não costumo criticar o trabalho dos outros encadernadores. Criticar é opinar sobre o trabalho alheio e apontar falhas a corrigir. Disfarçado de um vago princípio ético, meu silêncio é o desejo de que façam o pior trabalho possível, pois, quanto pior a concorrência, maior a valorização do meu trabalho.
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Além do mais, são pessoas normalmente sem maior instrução, jamais tendo lido os livros que encadernam, sem compreender o verdadeiro valor do objeto livro.
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A Tristeza é que até conhecem as mínimas técnicas corretas, mas nunca as utilizam, a não ser que o cliente exija claramente como deseja que seu livro seja tratado. Em todos os casos, encadernam com o menor custo e o menor trabalho possível.
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Mas é impossível calar ao me deparar com certos trabalhos.
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Hoje mesmo, um pobre e mutilado livro chegou às minhas mãos. É um livro de Registro de Casamentos de cartório, preenchido no ano de 1952. Mede cerca de 48 centímetros de altura, por 32 centímetros de largura e cerca de 9 centímetros de espessura nas suas trezentas folhas.
Considerando a boa qualidade do papel importado daquela época e seu intenso manuseio, podia estar em estado razoável de conservação. Normalmente, gosto de trabalhar com o material dessa época, principalmente se nunca sofreu nenhuma interferência anterior.
O processo é o de sempre, consertando todos os rasgões com papel de seda, reforçando as dobras das folhas para recosturar.
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Mas, esse pobre livro sofreu dilacerações irrecuperáveis. Um encadernador (LH Encadernações, quando ainda era ali na Alferes Poli, em Curitiba) cometeu seu trabalho bem recentemente, há uns dois anos, no máximo. Eu sei por ter estado lá e visto. Pedi que fizessem da forma correta, mas disseram que dava muito trabalho.
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Como as dobras das folhas estavam bem desgastadas, o livro foi GUILHOTINADO bem no seu lado esquerdo, tornando únicas as grandes folhas dobradas que formam um caderno.
Em seguida, a margem esquerda foi FURADA. Como se não bastasse, errou o primeiro furo, que ficou muito perto da borda, tendo furado de novo. A seguir, simplesmente AMARROU as folhas soltas.
O que era um LIVRO composto de CADERNOS, virou um BLOCO de folhas soltas.
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Quanto às folhas internas, nenhuma delas foi consertada ou restaurada. Minto! Algumas que estavam muito rasgadas receberam FITA DUREX.
É o pior que se faz com um documento público!
A fita plástica auto-colante é extremamente ácida.
É impossível retirá-la quando recente, sem prejudicar o texto.
No curto prazo, escurece.
Se é de qualidade razoável apenas seca com o tempo e se solta. Se é barata, torna-se gosmenta.
Todos os tipos enrolam e deformam o papel.
Deixam a fibra do local ressecada e quebradiça.
Não bastando esse erro, sequer tiveram o cuidado de pelo menos escolher o lado da folha que não tivesse nada escrito. Foram colando a fita durex sem nenhum critério e de forma abundante.
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A capa já estava inteiramente destruída. Foi feita com papelão reciclado poroso e mole, de péssima qualidade, coberto de vulcapel, que é um plástico fino com forro de papel 56 gramas, que não se presta nem mesmo para livros formato ofício. Não havia reforço interno e estava presa ao miolo apenas por um tecido colado à lombada.
Na primeira vez em que foi colocado em pé, deve ter cedido ao peso do livro.
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Como encadernar um livro tão mutilado?
Refazer os cadernos, colando a folha um à folha doze, a folha dois à folha onze, sucessivamente, juntando-as com uma tira de papel o mais fina possível, considerando a grossura e o peso da folha.
O problema é que são trezentas folhas, sendo necessário usar cento e cinquenta tiras que depois serão dobradas. O volume resultante da colagem das tiras causa uma diferença de uns quatro centímetros entre a lombada e a espessura normal do livro. Ou seja, a metade de sua espessura.
A lombada fica muito mais grossa, forçando o livro a sempre ficar entreaberto, facilitando a penetração de sujeira e entrada de umidade.
Deixar o livro assim? O problema é que a abertura do livro vai ser forçada, pois a área do papel ao longo da lombada já apresenta rachaduras. É um livro velho e o papel já está seco, com o mínimo uso as folhas vão se partir longitudinalmente.
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De qualquer forma, vai demandar muito trabalho.
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Quando insisto no estabelecimento de Normas Técnicas para Encadernação de Livros e Documentos Públicos (veja Página), meu objetivo é estabelecer padrões para todos os encadernadores, um critério para julgar um trabalho, até mesmo responsabilizar o profissional que cometa um crime semelhante ao que foi perpetrado nesse livro. O responsável final, o titular do cartório, teria como exigir que a técnica correta fosse usada.
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Naquele dia, há dois anos atrás, quando testemunhei a desatrosa interfência nesse mesmo livro, meu primeiro impulso foi evitar a tragédia, arrancar das mãos inconseqüentes daqueles pobres encadernadores e sair correndo. Contive. Racionalizei que cada um tem o livro que merece. Que a corregedoria não está nem aí para esses detalhes. Que minhas preocupações devem ser psicopatias, reações anormais que ninguém vai entender. Então, senti um arrepio e soube com certeza que um dia aquele livro estaria em minhas mãos, para que eu salvasse o que fosse possível. E ia dar muito trabalho.
A profecia foi cumprida.
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Outro livro a mesma época, com as folhas intactas.
 

Um comentário:

Anônimo disse...

Que trabalho horrível!

Sou leigo no assunto e confesso que já devo ter feito 'consertos' em meus livros de deixar profissionais de cabelo em pé. Mas há coisas, como isto, que é fácil ver que é absurdo.

Como gosto de comprar livros usados, geralmente antigos (maioria entre as décadas de 30 e 60), quase sempre sou obrigado a fazer algum reparo. Geralmente não se trata de nada valioso, de modo que qualquer conserto servirá apenas para tornar o livro manuseável e aumentar sua vida útil. No entanto, geralmente busco ver toda espécie de dica na internet a respeito de encadernação e restauro antes de mexer.

O último caso foi uma pequena bíblia da década de 60. A capa está em bom estado, assim como o miolo. O único problema é que a capa estava descolando... O antigo dono do livro (adquirido num sebo) colou as duas primeiras e últimas páginas para evitar que a capa caísse. Nem tentei descolar a da frente, teria de fazê-lo usando algum produto químico. Atrás, a folha descolou com facilidade.

Para fixar novamente a capa, utilizei goma arábica (a cola que achei aqui em casa, ao lado da cola branca comum, de escola, que soube ter pH ácido... então decidi não usar). Fiz um reforço na antecapa usando papel cartão. Certamente não ficou perfeito, mas a capa tornou-se firme novamente e o livro manuseável.

Ótimo blog!